O HISTORIADOR COMO MEMORIALISTA : REFLEXÕES TEORICAS E METODOLOGICAS

Por Cláudio Correia de Oliveira Neto
Historiador Licenciado- UFRN
Técnico de Nível Médio Integrado em Controle Ambiental- IFRN


A proposta deste texto é discutir a atuação dos profissionais de história em projeto de memória, centro de memória e memorial. Irei dividir esta discussão em dois textos complementares. Este primeiro me deterei a realizar reflexões teóricas e metodológicas sobre nossa ação. O segundo será análise de casos concretos em memoriais. Em ambos os casos priorizarei os memoriais.
CONCEITUALIZANDO
            É necessário pontuar duas questões conceituais:
 1. O conceito de memória que utilizarei  
2. As definições de projeto de memória, centro de memória e memorial.
 Aqui adoto a concepção de Le Goff de Memória, compreendida como sendo a propriedade de conservar certas informações pelas quais os homens atualizam suas impressões ou informações passadas ou que eles compreendem como passadas. Entendo que memória coletiva e individual possuem uma relação dialética uma vez que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que   este ponto de vista muda conforme o lugar que ocupo, e que mesmo este lugar muda segundo as relações que mantenho com os outros meios” conforme afirma Halbwachs e que ela em certa medida “se efetivou precisamente excluindo do lugar de memória oficial a manifestação da memória dos excluídos”, como bem coloca Seixas. O lembrar também implica em produzir esquecimento.
A historiografia ainda não fornece claras definições e distinções para projeto de memória, centro de memória e memorial. A conceituação fica então a cargo das experiências práticas. Com base nelas podemos então definir que projeto de memória trata-se da elaboração de uma narrativa a partir da memória coletiva de um determinado grupo social por meio do inventário documental e patrimonial que é materializada em forma de texto e/ou exposição temporária.  É uma ação intermitente, rápida e pontual que pode evoluir para os outros dois aparelhos aqui apresentados, dependendo do desejo e proposito dos grupos envolvidos. Já o memorial é uma estrutura física ou virtual perene que visa a preservação e difusão da memória de uma instituição especifica com objetivos restritos.  O centro de memória possui as mesmas características de um memorial mas com um público mais amplo e extrapolando os limites institucionais e é gerador de outros projetos de memória. Os museus diferem dos três aparelhos anteriores porque possuem um conjunto de atividades que ultrapassa o campo da memória.
METODOLOGIA DE ELABORAÇÃO DE MEMORIAIS.
Dito a parte conceitual podemos enveredar pela metodologia da produção de um memorial. Ao ser chamado para criar um memorial o historiador deve  primeiro fabricar um projeto de memória, ou seja, uma narrativa para aquela memória de maneira a atender as demandas da instituição contratante. Esta é “a parte que te cabe deste latifúndio”, a narrativa histórica. Para tanto ele deve pesquisar a literatura sobre aquela instituição, inventariar a documentação e o patrimônio que pode auxiliar no processo de contar aquela história. Deve também averiguar os interesses, práticas e discursos acerca da memória institucional dos diversos grupos que compõem aquela empresa/órgão/instituição. O historiador poderá usar entrevistas semiestruturadas (escritas ou gravadas), grupo focal, oficina de sensibilização e questionários dirigidos, de acordo com o grupo que pretende recortar. Feita toda a coleta de dados, pelos mais diferentes instrumentos, sistematizasse a narrativa.
Em seguida começa o trabalho multidisciplinar com comunicólogos, museólogos, arquitetos e demais recursos humanos necessários. A partir da narrativa do historiador, o museólogo estruturará o projeto expográfico, o arquiteto definirá os meios para executar o projeto museografico e o comunicólogo adequará a linguagem ao público-alvo do memorial. Ao historiador, ainda cabe instituir o programa educativo do memorial. Após a conclusão do memorial é o setor educativo que ficará responsável pela administração do empreendimento cultural, então o historiador deve treinar a equipe educativa e elaborar o material didático para os possíveis públicos. Normalmente a criação de memoriais é dividida em duas fase: elaboração e execução. Depois da primeira fase se entrega o relatório parcial e faz o acompanhamento da execução A conclusão do trabalho se dá na execução com a entrega do relatório final e recomendações para os contratantes.
DESAFIOS DA PRÁXIS 
            Há quatro grandes desafios a serem enfrentados pelos historiadores que trabalham com memorial: amadorismo no registro da memória, disputas de poder em torno da memória, o trabalho multidisciplinar e perda de sentido do memorial. Boa parte da documentação de um memorial foi registrado de maneira espontânea e amadora, o que impacta diretamente no projeto e na narrativa. Um exemplo claro do amadorismo é o registro fotográfico, geralmente carece de técnica, vem sem legenda ou identificação, o que demanda do historiador um tempo considerável da pesquisa. Dependendo da instituição ocorre entraves na análise documental devido a dificuldades de manusear termos técnicos da instituição, entre muitos outros problemas de registro.
            Como já afirmado no item “Conceituando” a memória sofre distorções dependendo do grupo social que a possui, fazendo do memorial palco de disputas pelo controle e edição da memória. Geralmente os instrumentos de averiguação da memória apontam diferentes versões da memória coletiva dependendo da sua hierarquia dentro da instituição. É comum que o alto escalão aponte para um egocentrismo. Todos querem ser lembrados e que sua memória seja a hegemônica. Haverá palpites para todos os lados e gostos. O historiador se torna um mediador dessas disputas e deve levar essa miscelânea em conta, e por meio do método histórico resistir às pressões para não se tornar refém de um grupo. É possível também que a narrativa do historiador-  ou certos elementos dela- seja refutada pela instituição, mesmo havendo da parte do historiador uma fundamentação documental ou teórica. Neste caso o historiador deve refazer sua narrativa, uma vez que o objetivo dele é contar uma história na qual a instituição se sinta representada.
            Os historiadores tem a solidão como parte característica da profissão, as pesquisas geralmente são individuais, onde passamos muito tempo a sós com nossas fontes, autores e ideias. Raramente somos convidados a um trabalho coletivo (produzir coletivamente não é o mesmo de apresentar coletivamente ou para a coletividade) e quando ocorre o convite em geral é para trabalhar com os nossos pares. Isto tudo causa uma dificuldade no trabalho multidisciplinar que um memorial exige. Lá trabalhamos com várias áreas que não conhecemos e nem dominamos, o que já nos obriga a ter que confiar no trabalho alheio. Estes outros profissionais também tem demandas e interesses na elaboração, que podem vir a se somar ou conflitar com o seu. Para exemplificar, o museólogo pode achar necessário suprir parte da narrativa, o arquiteto determinar que um projeto do museólogo não tem condições operacionais de ser executado, o comunicólogo ter que alterar o projeto arquitetônico para facilitar a linguagem para um determinado público. Em alguns momentos o historiador terá que ceder e em outros persuadir/dissuadir o restante da equipe. Para ter a segurança nesse processo de negociação é importante uma rigorosa fundamentação teórica e metodológica.
            Boa parte dos memoriais estão localizados em espaços a parte da instituição geradora, com difícil acesso para o público interno e externo, sem setor educativo para receber visitantes e atualizar as exposições. Esse conjunto de fatores, aliados ao baixo retorno, seja ele material ou simbólico, leva a uma perda de sentido do memorial. Uma estrutura criada para preservar a memória é jogada ao esquecimento institucional. Acaba por si tornar um peso morto, uma despesa desnecessária e termina por ser desativada. O historiador deve antever o problema do esvaziamento de significado quando estiver observando o espaço físico destinado ao memorial, o público-alvo escolhido, a formação e estruturação do setor educativo, e acima de tudo fazer a instituição avaliar se ter e manter aquele aparelho  de fato é necessário para ela.
POSSIBILIDADES EM ABERTO
            Por ser uma área de atuação muito recente há um universo de possibilidades em aberto. Entre elas temos o de começar a pensar um gerenciamento da memória. A gestão da memória seria uma política de controle da produção, registro, manipulação, difusão, atualização e ressignificação de sentido da memória de uma instituição. Como se tratam em sua maioria de instituições em pleno funcionamento há a necessidade de administrar todos as memórias que serão produzidas no futuro e que mais tarde serão incorporadas ao memorial, sanando o problema do amadorismo do registro, facilitando a entra de novos elementos na narrativa e combatendo a perda do sentido do memorial.
Referências Bibliográficas.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A arte de inventar o passado- Ensaios de teoria da História.Bauru:Edusc.2007
LE GOFF, Jacques. História e Memória.5 ed. São Paulo:Unicamp.2003
SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. Minas Gerais: Faculdade de Uberlândia.
PARA LEITURA MAIS APROFUNDADA
AXT, Gunter. Memória, cidadania e os novos campos de trabalho do historiador. http://www.gunteraxt.com/pdf/MEMORIAHISTORIADOR.pdf
OLIVEIRA NETO, Cláudio Correia de. O historiador como memorialista: reflexões teóricas e metodológicas.  Natal, 01 jun. 2016.


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