Sobre a existência dos Índios que não existem
Existem
índios no Rio Grande do Norte? A propósito da presença de populações indígenas
no Sertão do Seridó entre os séculos XVIII e XIX[1] [1]
A constante veiculação
de notícias na TV e em outros meios de comunicação envolvendo grupos indígenas
de diversas partes do país em busca da posse de terras cuja presença ancestral
lhes outorga o direito de legítimos donos ou mesmo de seus rituais e danças
deve chamar a atenção dos potiguares, habitantes do estado do Rio Grande do
Norte. Por outro lado, pode ser que tais notícias nem façam parte do rol de
interesses dos norte-rio-grandenses. Afinal de contas o Piauí e o Rio Grande do
Norte, segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), não possuem, oficialmente,
populações indígenas. Ironicamente, os naturais ou habitantes do Rio Grande do
Norte são chamados de potiguares, numa alusão aos índios Potiguar, que
habitavam a costa do estado quando os europeus aí aportaram.
Obras
consagradas de historiadores que trataram da História do Rio Grande do Norte,
como as de Luís da Câmara CASCUDO (1984) e Augusto Tavares de LIRA (1982),
inscrevem a existência dos nativos até mais ou menos o século XVII, no máximo
até as duas primeiras décadas do século XVIII. Depois da Guerra dos Bárbaros
(1683-1725) – movimento de resistência indígena contra a expansão da pecuária
no sertão e que é considerado o maior conflito interétnico do Brasil Colonial –
os índios teriam sido dizimados do interior. Os lugares por onde andavam deram
lugar a fazendas destinadas à criação de gado e, em alguns casos, a pequenas
manchas urbanas, as povoações e vilas, origens das atuais cidades sertanejas.
Em lugar das divindades nativas um deus que é uno e trino ao mesmo tempo
instalou-se nas capelas erguidas nas plagas sertanejas, onde Nossa Senhora (com
seus vários títulos), Sant’Ana, São Sebastião e outros santos da tradição
cristã repousam como protetores da população que crescia paulatinamente. À exceção
de alguns contingentes que foram poupados do extermínio físico, mas aldeados em
missões religiosas, o restante dos índios teria, de fato, sido expurgado da
então Capitania do Rio Grande.
O peso
desse possível “desaparecimento” dos índios no Rio Grande do Norte é tão forte
que mesmo na contemporaneidade seus efeitos ainda se fazem sentir. Os moradores
das cidades do Sertão do Seridó, porção centro-sul do estado, por exemplo,
costumam falar dos indígenas como elementos vestigiais de um passado que somente
é lembrado quando alguém fala das caboclas-brabas amansadas a dente de cachorro
e casco de cavalo ou dos índios Cariri. Até mesmo os livros didáticos tendem a
mencionar o índio apenas no Período Colonial. Durante o Império e a República
eles passam desapercebidos, inexistindo nas aulas de história, a não ser quando
falam de sua participação na constituição da personalidade “mestiça” do
brasileiro, tão defendida por Gilberto FREYRE.
Contrariando
as hipóteses que falam da ausência de índios da história norte-rio-grandense
após o efetivo povoamento do interior, pesquisadores levantaram a poeira dos
arquivos eclesiásticos da Paróquia de Caicó (antiga Freguesia da Gloriosa
Senhora Santa Ana do Seridó) e apontaram as pistas de que precisávamos para
questionar e refutar a suposição de um extermínio total dos nativos. Dom José
Adelino DANTAS e Sinval COSTA, em suas pesquisas feitas nos anos 70 e 80/90 do
século XX, respectivamente, detectaram a presença de índios nos registros de
batizados, casamentos e óbitos da Freguesia de Santa Ana entre os finais do
século XVIII e primeiras décadas do século XIX, junto aos demais grupos sociais
da região (brancos e homens de cor).
Partindo
das luzes que os dois historiadores aludidos nos deram pudemos empreender uma
devassa nos arquivos da Freguesia de Santa Ana, em Caicó e em outros arquivos
da região do Seridó. O resultado já era esperado e a nossa hipótese a respeito
da sobrevivência de índios no Sertão do Seridó estava confirmada. O extermínio não fora total, como a historiografia
consagrada pensara. De maneira alguma queremos negar a ferocidade que foi usada
na empreitada da colonização e povoamento da zona sertaneja da Capitania do Rio
Grande. Os conflitos travados contra os índios da região decerto que lhe
tolheram suas chances de sobreviver em meio a uma sociedade eurocêntrica e
marcada pela exclusão social, ou mesmo de conviver lado a lado com o homem
branco. Mais que isso: grande parte dos grupos indígenas que se deslocavam no
sertão potiguar quando dos primeiros contatos com os colonizadores não
sobreviveria às matanças levadas a termo pelos agentes da Coroa.
Os
números que conseguimos na pesquisa empreendida são diminutos em relação aos
contingentes populacionais dos outros grupos étnicos, o que demonstra que a
sobrevivência dos índios se deu em prejuízo do desaparecimento de uma grande
parcela de suas populações quando da Guerra dos Bárbaros. O perfil demográfico
com relação aos indígenas é o seguinte: de 685 crianças batizadas na Freguesia
de Santa Ana entre 1803 e 1806 1,16% eram índias; 2,42% dos 537 casamentos
celebrados envolviam indígenas entre 1788 e 1809, bem como 2,66% das 976
defunções registradas entre 1788 e 1811 eram de índios. Poderíamos perguntar de
onde eram originários esses indígenas. Nem todos os registros trazem essa
peculiaridade, porém, dos assentos matrimoniais que trazem a origem dos
nubentes constatamos que sete índios/índias eram naturais da Freguesia de Santa
Ana, nove de outros lugares da Capitania do Rio Grande (incluídas vilas criadas
a partir de antigas missões religiosas) e cinco de outras capitanias (Paraíba,
Ceará e Alagoas).
No
correr do século XIX os índios apareceriam nos Censos Demográficos e na
documentação judicial da Comarca do Caicó sob a denominação de caboclos, demonstrando
que mesmo sob a marca da discriminação e do preconceito teimavam em resistir.
Os epílogos desta pesquisa nos mostram que muito do que se publicou sobre a
História do Rio Grande do Norte precisa ser revisto, especialmente os escritos
que tocam na presença indígena no estado e com mais particularidade no
interior. No caso do Sertão do Seridó é preciso que se reveja, também, o papel
que os diferentes grupos sociais, incluindo os índios, mamelucos e homens de
cor (negros, pardos e mulatos, por exemplo) tiveram na constituição das
famílias e da cultura da região. Caso prossigam com êxito as pesquisas sobre as
populações indígenas no Rio Grande do Norte, quem sabe um dia possamos falar da
sua presença nos dias atuais, se ressurgirem através do processo da etnogênese.
HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO
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