“Ainda que ande pelo vale da sombra da morte”: a produção dos espaços de medo e punição

Claudio Correia de Oliveira Neto
Historiador
Especializando em Educação de Jovens e Adultos no contexto da diversidade
Técnico de nível médio integrado em controle ambiental
PRODUÇÃO MATERIAL E DISCURSIVA DOS ESPAÇOS DE MEDO

            Na localidade onde você mora deve haver uma rua que se evita passar pelo perigo de ser assaltado, um bairro que frequentemente está nos telejornais policiais, uma parada de ônibus que não é usada em determinado horário devia a arrastão, uma avenida que se apressa o passo para fugir de assalto ou bala perdida. Há sempre um espaço marcado pelo medo. Essencialmente nenhum espaço tem essência em si, a adjetivação do espaço é feita pelos sujeitos que nele habitam de forma material ou simbólica (ARRAIS, 2004) (TUAN,2013). Há um processo de produção de significado que o torna temido pelos transeuntes.  Esta diferenciação espacial se dá de duas formas: a material e a simbólica.
A passarela da BR101 em Parnamirim/RN se torna um espaço de medo que faz com que os pedestres prefiram não usá-la, arriscando a vida.

            O espaço é marca e expressão das relações sociais ali presentes (ARRAIS, 2004). Os espaços de medo são produzidos a partir de investimentos simbólicos e rituais feito pelo Estado e os grupos sociais. É no vácuo do poder público que se materializa o medo. Na ausência de iluminação pública, falta de policiamento, alta ocorrência de assaltos ou outros crimes violentos se concretiza o amedrontamento. Grupos sociais, sejam organizações criminosas ou moradores, demarcam o espaço de medo, os primeiros com pichações territoriais, os segundos com muros altos, cercas elétricas e tecnologias de segurança. O medo transforma a paisagem de maneira que tal sentimento se torna visível a todos.   Ali se estabelece uma relação de poder entre criminosos, moradores e o Estado. É notório que a presença destes espaços está intimamente ligada a questões de classes, são os bairros periféricos desprovidos de seus direitos básicos que mais sofrem com a violência e portanto possuem mais espaços de medo.
Os espaços do medo podem ser temporários e se estabelecem em determinados horários. Rua de Parnamirim/RN 

            Sobre esta realidade material se somam camadas e mais camadas de discursos produzindo um espaço mítico do medo (TUAN,2013).  As narrativas dos moradores violentados, as notícias das mídias e o imaginário dos que não vivenciam aquela realidade local vão produzindo um espaço por justaposição entre materialidade e discurso. Estes discursos vão impregnando a imaginação ampliando o medo e a sensação de insegurança, fabricando falsas percepções como a de que bandidos estão mais capacitados que a própria polícia. E os próprios moradores dos espaços de medo são contaminados por ele, ao ponto de que outras pessoas passam a temer aqueles que habitam aquele bairro violento ou rua perigosa. Colaborando assim para o preconceito e segregação sócio espacial. Cegando a todos, não os fazendo notar que o espaço de medo é uma fabricação coletiva e como tal pode ser reelaborada em um espaço de esperança e empoderamento. 
No imaginário local estes bairros vão se tornando  lugares míticos de violência como os bairros de Parnamirim/RN elencados acima

   



Como é possível vivenciar lugares apenas discursivamente podemos ter o que nunca vivenciamos ou conhecemos como no caso do meme acima relacionado ao bairro Vale do Sol em Parnamirim/RN 

PRODUÇÃO MATERIAL E DISCURSIVA DOS ESPAÇOS DE PUNIÇÃO
            A mão da justiça sempre é mais severa com as classes mais pobres, e assombrosamente generosa com os mais abastados. Esta infame justiça tem raízes históricas profundas que se iniciam na diáspora africana como mão-de-obra escrava para a elite branca europeia. Para o controle das massas são sempre necessárias punições exemplares que garantam a dominação material e simbólica sobre os outros. Mesmo após a abolição o pobre negro continuava sendo uma grave ameaça a ser punida com todo o rigor da lei. Os aparelhos de dominação criaram espaços de punição rigorosos capazes de tirar a humanidade dos aprisionados. Teoricamente os espaços de punição deveriam ter finalidades pedagógicas, se retira a liberdade para ensinar a se comportar bem na coletividade. Contudo o que se vê de fato é que o desejo não é só punir, o pobre insurgente deve passar frio, fome, apanhar e se animalizar. Aquele que por azar nasceu pobre e caiu na criminalidade não tem perdão. O criminoso de classe média alta cometeu um erro que pode ser perdoado, ele não é um pobre degenerado e naturalmente mal, logo sem salvação. Sobre a pobreza recai um imaginário de culpa, naturalização e o manto da criminalidade em potencial. A classe média quando clama por justiça, na verdade, em seu íntimo deseja vingança, a mais sangrenta possível. Daí não ser surpresa quem comemore genocídios em presídios.
A crise carcerária é resultado de um longo processo histórico de exclusão e marginalização de raízes étnicas e sociais

            O presidio é o lugar mítico onde que quem lá está deve sofrer, pois não se trata de um outro homem como os de fora, mas sim um monstro, um animal. Sendo pois ele um outro não humano, não é portanto portador de direito algum, pode se dispor do corpo destes como bem entender (joga-los em jaulas lotadas, não banha-los, não alimentá-los, não abraça-los). O espaço de punição se converte em um cemitério social. Assim como o lixo sai magicamente de nossas vistas e deixa de existir, assim também os criminosos produzidos por nossa sociedade deixam de existir ao serem presos. E também como o lixo só voltamos a nos preocupar com os encarcerados quando começam a nos incomodar com sua presença real ou simbólica.  

            A construção de espaços é uma produção coletiva onde planejadores e usuários estabelecem respectivamente de estratégias e táticas (CERTEAU,1998). Embora o Estado tenha planejado os presídios como espaço de punição as operações dos usuários realizados pelos presidiários transformam em um espaço de organização de classe. São nos espaços punitivos onde se reúnem indivíduos de uma mesma classe social que partilham de uma cultura criminosa que possuem demandas sociais e interesses econômicos em comum que não são atendidas pelo Estado. Pela convivência e necessidade vão se estabelecendo laços de parceria, financeiros e afetivos. Vão aos poucos elaborando uma complexa consciência de classe. Uma sofisticada hierarquia sócio-empresarial vai se montando. O precursor destas organizações foi o Primeiro Comando da Capital (PCC) que tem origem do encontro entre presos políticos e presos comuns que na época da Ditadura Civil-Militar brasileira dividiam o mesmo espaço dentro dos presídios(História do PCC). O presos comuns aprenderam as táticas usadas pelos presos políticos e criaram o PCC. Com projetos de expansão de seu poder para além da capital paulistana o Primeiro Comando se alastrou para todo o Brasil fornecendo para os demais criminosos uma série de benefícios, assistência financeira, judicial e proteção. Os integrantes locais desta facção logo aprendem o modus operandi  de funcionamento de uma organização criminosa e criam a sua própria, no caso potiguar o Sindicato do RN ou Sindicato do Crime do RN. A organização nacional e a organização local começam uma disputa pelo mercado consumidor e gerenciamento dos espaços de medo. Este confronto extrapola a área dos presídios e se estende para todo o estado, transformando o estado inteiro em espaço do medo.


            O medo passa a ser usado no jogo político a partir do emprego da violência como modo de impor a vontade pelo uso sistemático do terror. A opinião pública passa a ser manipulada e inserida nos confrontos entre as organizações criminosas. Como o poder público só compreende os presídios pela ótica da punição e desumanização ele não consegue criar soluções que equacionem a problemática do sistema penitenciário. A superação do medo e da punição passa pela produção de um espaço de reintegração social que mire no cerne da questão, que é étnico-social, como podemos aferir a partir da análise do perfil dos presidiários. Já alternativas como Associações de Proteção e Assistência ao Condenado (conheça mais da Apacs) que tem índice de recuperação é de 95% contra 25% das cadeias padrões. O mesmo Estado que seja por sua ausência ou ineficácia da origem aos espaços de medo e punição, devem também liderar na mitigação do problema, em conjunto com a sociedade civil organizada.  


REFERENCIAS BIBLIOGRAFIAS
ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004 (Introdução e Capítulo 1, p. 9-96). (A construção social do espaço urbano século XIX)
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. I. Petrópolis: Vozes, 1994. Parte III: Práticas de espaço, p. 169-220. (percepção e apropriação do espaço)
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. Textos: Corpo, relações pessoais e valores espaciais; e Espaço mítico e lugar. (categorias para pensar o espaço)

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OLIVEIRA NETO, Cláudio Correia de. “Ainda que ande pelo vale da sombra da morte”: a produção dos espaços de medo e punição. 31 JAN 2017. Disponível em   

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