Revirando a caixa de ferramentas: a construção do referencial teórico para o exercício da docência

A etnografia escolar pode ser comparada, guardando sempre as devidas proporções, a análise iconográfica. Não basta ao Historiador simplesmente descrever a iconografia, ele necessita identificar os sujeitos ali representados, o lugar social de quem produziu a iconografia, o contexto histórico daquela obra, descobrir e relacionar os elementos explícitos e implícitos na iconografia, para finalmente regatar a intenção comunicativa da obra. Regatar a mensagem daquilo que está sendo descrito é a real importância da etnografia. Ela nos serve para mergulhar nos problemas que emergem do cotidiano escolar, transmutar problemas em problemáticas e usar a teoria para orientar as decisões que melhorem o ensino-aprendizagem em história. O restante da semana após o dia 10 de setembro foram dedicados a teorizar  tudo o que a etnografia nos possibilitou enxergar para fazer o direcionamento das atividade e construção do plano de unidade e planos de aulas.
Diante dos relatos de observações das aulas os estagiários se perguntaram: como a teoria pode nos ajudar? O que os levou a outras duas questões: o que é uma teoria? E para que ela serve? Deleuze nos parece melhor da conta de responder as três questões quando em conversa com Foucault diz:


 “Exatamente. Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá−la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem−se outras; há outras a serem feitas. E curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate.”   (DELEUZE Apud FOUCAULT,2008:41)


            A teoria é aqui entendida como uma ferramenta que permite enxergar a realidade a partir de um tipo ideal, o que vai tornando a realidade mais inteligível orientando assim escolhas práticas. Para deixar mais claro cremos que a explicação de Cerri seja a que melhor se encaixe:


“O tipo ideal é, portanto, um instrumento de análise do qual buscamos interpretar as ações sociais, uma conceitualização que separa elementos da complexidade do real, e gera uma descrição compreensiva que permite compreender melhor os aspectos da realidade.” (CERRI: 2011:99)


            Não devemos, todavia tornar uma teoria um verdade imutável, a multiteorização contribui para uma compreensão mais completa da realidade (CERRI, 2011) desde que, estes estejam de acordo com o observado e se aplique aquele caso, a teoria nunca é uma totalidade, mas uma particularidade aplicada a casos restritos (FOCAULT, 2008) não cabendo generaliza-la. 
            Pensando na particularidade do ensino-aprendizagem em História dos alunos do 6º “A” e 6º “B” a autora que mais ajuda a entender aquela realidade é a Isabel Solé quando nos explica acerca da disponibilidade de aprendizado.  Ela se pergunta o que leva uma pessoa a se disponibilizar a aprender e outras não. Ela chega à conclusão que a disponibilidade está relacionada a duas coisas: o autoconceito e a motivação/significação.
            O autoconceito é a imagem que o aluno tem sobre si a partir daquilo que ele pensa, do que ele acha que os outros pensam sobre ele, sobre o que efetivamente os outros pensam e falam sobre ele e o que as experiências anteriores dele comprovam. O autoconceito é formado na interação com os diversos sujeitos sociais: pais, professores, colegas e mídias. O autoconceito pode ser positivo ou negativo, e implica diretamente na disponibilidade para aprender. Quando ele é positivo o aluno se acha capaz de realizar a tarefa, mas se for negativo o aluno achará a tarefa impossível de ser realizada. O autoconceito é sempre retroalimentado pelas experiências dos alunos, ou seja, se durante uma atividade ele fracassa o autoconceito negativo é reforçado. Quando o aluno não aprende um conteúdo ele também aprende que não é capaz de aprender. As atividades realizadas pelo professor-colaborador durante as observações ajudam os alunos a construírem um autoconceito negativo sobre si, um representação falsa de sua real capacidade de aprendizado. O professor-colaborador realça ainda mais a negatividade atribuindo aos alunos o título de “os piores”. Ora se todas as outras atividades eu não consegui fazer e as que eu fiz eu errei para que eu irei tentar novamente? Diante da minha incapacidade é bem melhor copiar do colega. A experiência de monitoria do dia 10 de setembro no 6ª “A’  comprova a indisponibilidade dos alunos e a dificuldade de convence-los de sua capacidade de resolver a tarefa. Mas a mesma experiência também comprova que diante da realização da tarefa o autoconceito se altera, pois quando eles aprenderam o conteúdo também aprenderam que são capazes de aprender.
            A motivação para realizar uma atividade está intrinsecamente relacionada à capacidade que o aluno tem de dar significado aquilo que ele está fazendo. Nenhuma das atividades propostas no período de observação possuía ou possibilitava ao aluno atribui-lhe um significado que o motivasse a realiza-las. A motivação possui distintas intensidades, que Solé chama de enfoques. Os enfoques são de dois tipos: enfoque profundo e enfoque superficial. O enfoque profundo é quando o aluno produz um significado ao que está aprendendo e leva esse aprendizado para o seu cotidiano. O enfoque superficial é quando mesmo sem construir um significado que ultrapasse os muros da escola ele atribui à tarefa uma missão a ser comprida, ainda que por mera obrigação ou apenas para pontuar. O enfoque superficial é o que mais aparece nas turmas em estudo no E.M.P.U.G., ainda assim com baixa frequência tendo em vista que a maioria se quer realiza a tarefa mesmo que ela componha parte da nota bimestral.
       É valido também as discussões feitas por Jacques Rancière ao analisar a experiência do professor de francês e monarquista Joseph Jacotot durante o seu exilio nos Países Baixos em 1789. Jacotot durante o exilio leciona francês para alunos flamencos, todavia os alunos não falam francês e o professor não fala flamenco o que dificulta a explicação do conteúdo.  Ainda assim o professor passa uma atividade de tradução onde de um lado um livro em francês e do outro o livro em flamenco. Contrariando a expectativa do professor os trabalhos foram muito melhor do que o esperado o que o fez se questionar: como aprenderam sem que eu desse nenhuma única explicação? O trecho abaixo talvez melhor explique o motivo:


“Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes, não sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No entanto, ele nada lhes havia comunicado de sua ciência. Não era, portanto, a ciência do Mestre que os alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues àquela do livro. Assim se haviam dissociado as duas funções que a prática do mestre explicador vai religar, a do sábio e a do mestre. Assim se haviam igualmente separado, liberadas uma da outra, as duas faculdades que estão em jogo no ato de aprender: a inteligência e a vontade.”( RANCIÈRE, 2002: 25-6)


            O que ocorre é que boa parte do que aprendemos no nosso cotidiano aprendemos sem que ninguém nos explique, mas por esforço próprio percebemos e construímos conhecimento, é o que Rancière chama de Ensino Universal. O que ocorre na pedagogia tradicional é que a inteligência fica subordinada a uma ordem explicadora. A lógica tradicional é que o professor está num nível hierárquico de instrução maior do que seu aluno, o que leva ao embrutecimento (RANCIÈRE, 2002) onde o conhecimento passa pelo filtro do professor que transforma o que é mais complexo em algo mais simples por meio da explicação. Quando o professor considera que o aluno não tem como acessar o complexo ele cria então uma subordinação , a inteligência do aluno fica submissa a inteligência do professor, então o aluno fica dependendo do professor para que lhe explique até mesmo o mais banal da vida.  A ordem explicadora gera no aluno um autoconceito negativo de que ele só é capaz de aprender por meio da explicação do professor e não por meio de sua própria inteligência. A etnografia escolar se encontra cheio desses casos onde o aluno responsabiliza a má explicação do professor ou até mesmo a ausência do professor como fator que o impede de aprender. Há alunos nas redes de ensino a espera de um professor cuja explicação possibilite compreender a tudo, eles não se dão conta que podem aprender usando sua inteligência e capacidade de raciocínio. Contudo, como ressalta Racière, aprendemos sem mestre explicador, mas não sem mestre. Sendo assim ao professor cabe construir um ambiente onde os alunos possam se emancipar e aprenderem que são capazes de aprender.
            O professor não só elabora problemas em que o aluno só consegue sair mediante o uso de sua inteligência como é responsável por imprimir vontade. Nos esclarece Racière que:


“Entre o mestre e o aluno se estabelecera uma relação de vontade a vontade: relação de dominação do mestre, que tivera por conseqüência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro — inteligência do livro que era, também, a coisa comum, o laço intelectual igualitário entre o mestre e o aluno. Esse dispositivo permitia destrinchar as categorias misturadas do ato pedagógico e definir exatamente o embrutecimento explicador. Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência. O homem — e a criança, em particular — pode ter necessidade de um mestre quando sua vontade não é suficientemente forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência.”(RANCIÈRE, 2002:26)


            A motivação para aprender, portanto vai além do aluno atribuir significado e se liga ao professor estimular o aluno a construir o sentido de sua aprendizagem. Isso se dá por meio de aulas mais atraentes, dinâmicas, jogos ou atos muito mais simples como dar a mínima atenção aos alunos, fazendo que se sintam queridos e respeitados. O simples fato de durante a monitoria o estagiário ter pedido licença aos alunos para ajuda-los os motivou. A afetividade como motivadora é um elemento importante no ensino fundamental, muitas vezes o aluno se empenha na atividade simplesmente por gostar do professor.
            Construir um Círculo de Potência, ou seja, um ambiente educacional com atividades que estimule o aluno a por meio de sua inteligência superar desafios e produzir conhecimento requer levar em consideração a progressão dos conteúdos no ensino de História.  A importância de levar em consideração a progressão está na compreensão de que:


“Em síntese, devemos, sim, estudar a distribuição sucessiva dos conhecimentos e habilidades históricas – aqui chamada de progressão –, e à luz de procedimentos extraídos de investigações rigorosas, sistemáticas e controladas. Essa atitude está fundada na consciência de que processo de escolarização básica significa também um processo de maturação do corpo discente em seus aspectos físico, cognitivo e afetivo.” (FREITAS, 2011:4)


            Freitas, porém afirma que a problemática da progressão reside principalmente em estabelecer critérios que organizem e distribuam os conteúdos ao longo da vida escolar. Quando assumimos que devemos fazer a progressão somos chamados a dizer como fazer essa progressão. Os critérios de seleção devem está subordinados a uma lógica que permita justifica-los. Dentre essas lógicas estão às teorias do desenvolvimento humano, que possibilitam entender e hierarquizar o desenvolvimento e auxiliar na construção da progressão dos conteúdos. No leque das teorias de desenvolvimento a que mais se adequa a realidade dos 6º anos em questão é a produzida por Jean Piaget.


Graças a Piaget, temos um modelo de funcionamento individual e uma explicação dos mecanismos gerais por meio dos quais os alunos podem adquirir novos conhecimentos. E isso é essencial quando devemos delinear programas, elaborar tarefas, organizar atividades na aula e entender as dificuldades que os alunos apresentam de acordo com as suas capacidades cognitivas. Também é essencial quando necessitamos planejar situações educativas que potencializem o papel intuitivo e criativo dos alunos e que se distanciem de modelos de transmissão passiva da informação (SALVADOR et al. Apud FREITAS, 2011:8-9).


            Convém contextualizar a teoria piagetana para um melhor uso dela na prática docente. Temos que lembrar que, como discutido anteriormente, as teorias só se aplicam a casos distintos e requerem outras teorias para dar um panorama mais completo. Os trabalhos de Piaget são produzidos em um contexto não pedagógico:


Piaget, sabemos todos, não pautou as suas pesquisas por objetivos educacionais, apesar de ter discutido aprendizagem e aquisição do conhecimento. Foi um epistemólogo (Salvador et. al, 2008, p. 248). Seus leitores autorizados também ponderam sobre as possibilidades de transferência das suas teses para a educação escolar (Cf. Davis, 2005, p. 49). (FREITAS, 2011:7)
           

Foi apenas no fim de sua vida que ele dedicou-se com mais obstinação a pedagogia. Além desse contexto sua produção se insere em outro momento histórico onde os indivíduos eram sujeitados e produtores de outras interações sociais, recebendo outros estímulos e se desenvolvendo de outra forma. De maneira geral as interações sociais da atualidade levam os indivíduos a se desenvolverem de forma distinta da que quando Piaget produziu sua teoria. A passagem de um estagio de desenvolvimento para outro depende dos estímulos recebido, ou seja, uma criança de uma faixa etária que deveria se enquadrar em um estagio determinado não se enquadra nele pois não recebeu os estímulos necessários. A teoria de Piaget é um tipo ideal e como tal ela é uma referência da realidade e não o real, o que exige sensibilidade e cuidado na análise dos pesquisadores.

            As ferramentas até aqui apresentadas fornecem um poderoso arsenal teórico-metodológico para equacionar a problemática: como transformar o autoconceito negativo dos alunos em um autoconceito positivo que os possibilite aprenderem que são capazes de aprender? A partir dos referenciais aqui debatidos e apoiados nos autores citados os estagiários optaram por uma estratégia que lhes pareceu mais apropriada a situação: produzir um conjunto de atividades em que os alunos deverão construir o seu conhecimento sem que haja uma ordem explicadora, sendo os próprios alunos capazes de retirar suas conclusões baseados nos exercícios realizados. Não basta dizer que eles são capazes de aprender é necessário mostrar através de experiências praticas onde eles possam obter sucesso em meio às dificuldades.

Referências Bibliográficas


CAIMI, Flávia Eloisa. Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino aprendizagem e formação de, professores de História.  Revista Tempo.2007.
CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora FGV,2011. (Coleção FGV de bolso. Série Histórica). CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora FGV,2011. (Coleção FGV de bolso. Série Histórica).
FOUCAULT,  Michel. Microfísica do poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
FREITAS, Itamar. Conteúdos e progressão dos conteúdos no ensino de História (2): a contribuição dos teóricos do desenvolvimento (Jean Piaget).<http://itamarfo.blogspot.com/2011/01/conteudos-e-progressao-dos-conteudos-no_09.html>. Acesso em 02 fev. 2012.
EDITORA Moderna. Projeto Araribá História 6º ano.  2ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 2007.
EDITORA Moderna. O Reino da Núbia. In: EDITORA Moderna. Projeto Araribá História 6º ano.  2ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 2007.  p . 91-98.
EDITORA Moderna. China e Índia. In: EDITORA Moderna. Projeto Araribá História 6º ano.  2ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 2007.  p . 106-132.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação                                            intelectual. Belo Horizonte : Auténtica, 2002.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica – Teoria da História: fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2011.
SOLÉ, Isabel. Disponibilidade para a aprendizagem e o sentido da aprendizagem. In: COOL, César et al. O Construtivismo na sala de aula. 6 ed. São Paulo: Ática, 2006.

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